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Aborto na América do Sul

Os Médicos Pela Escolha participaram no IV Congresso Latino Americano de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos, que teve lugar em Montevideo, capital do Uruguai.

Os direitos sexuais e reprodutivos são um dos principais temas na agenda política da América Central e do Sul. Mesmo com o recuo da Nicarágua e com as legislações restritivas do Chile e do El Salvador (que não permitem o aborto terapêutico, mesmo nos casos de risco de vida para a mulher), iniciam-se ventos de mudança neste continente.

O Uruguai prepara-se para aprovar uma lei do aborto, semelhante à portuguesa. No Brasil e na Argentina intensificam-se os esforços para criar associações de médicos pela escolha e os governos têm demonstrado sinais de abertura em relação a esta questão. A cidade do México (Estado Federal) já tem uma legislação própria aprovada na mesma altura que a portuguesa e tem boas possibilidades de reproduzi-la no resto do país. Na Guatemala e na Colômbia, os profissionais de saúde têm também começado a levantar a voz em prol dos direitos sexuais e reprodutivos da sua população.

Todos as experiências dos profissionais de saúde destes países e de outros foram abordados neste Congresso, onde foi dado muito ênfase às políticas de Educação Sexual e de Planeamento Familiar destes países.

 O poder da Igreja Católica está profundamente enraizada neste continente, influenciando as políticas de saúde e principalmente a mentalidade da maioria da população. A Igreja que se opõe ao aborto legal é a mesma que na maioria dos casos se opõe a uma contracepção eficaz e que alimenta mitos, crenças e medos relacionados com a sexualidade, que infelizmente só contribuem para aumentar a gravidez adolescente, a gravidez não desejada, o aborto clandestino e o afastamento das mulheres de cuidados básicos de saúde sexual e reprodutiva. Em muitas regiões, o fanatismo religioso provoca verdadeiros casos de segregação e exclusão de muitas mulheres, que para além de fisicamente correrem riscos ao cometer um aborto ilegal, expõem-se a humilhações verdadeiramente impressionantes.

Ouvimos muitas histórias que provavelmente preferíamos não ter ouvido, mas também ganhamos consciência que o aborto ilegal é um problema global que pode e deve ser combatido. As que mais nos impressionaram foram as faladas em português, do nosso país irmão, o Brasil. Conhecemos muitos profissionais de saúde que lutam arduamente contra o aborto clandestino e pelos direitos das mulheres no Brasil. 

Certamente este experiência pode ter sido determinante para o futuro dos Médicos Pela Escolha. 

Um Amanhecer Mais Livre

O dia 12 de Fevereiro de 2007 amanheceu mais livre para todos os portugueses.

Há um ano as mulheres recorriam às urgências dos hospitais com abortos incompletos, feitos clandestinamente. Por medo da lei, da família ou até dos profissionais de saúde, faziam o aborto “naquele sítio” ou com “aqueles comprimidos”. Nos serviços de saúde recebiam apoio médico, o sigilo médico era respeitado, mas não havia acompanhamento, raras vezes havia um diálogo aberto e o seguimento para uma consulta de planeamento familiar nem sempre era feito. O facto de o aborto ser um tabu médico, expresso ainda no seu antiquado Código Deontológico, levou a que esta situação fosse tolerada pela maior parte dos profissionais de saúde. As mulheres foram as principais perdedoras porque, durante décadas, não foram devidamente acompanhadas.

Não se resolve a questão do aborto com propaganda pseudo-científica, destinada a manipular as mulheres portuguesas. Um ano depois, em muitos artigos de opinião volta-se a falar de “síndrome pós-aborto” um diagnóstico inexistente, que serve apenas propósitos políticos. Na campanha do referendo propusemo-nos desconstruir estes falsos argumentos e continuaremos a fazê-lo. Fazer um aborto sem acompanhamento médico, pondo em risco a sua saúde, sob o signo da criminalidade, esse sim, deixa certamente marcas para toda a vida.

As mulheres que fazem hoje uma I.V.G. legal sabem que serão acompanhadas, respeitadas e que tudo será feito para que sejam minimizados os efeitos do momento difícil pelo qual estão a passar. Mas sabem, sobretudo, que não cometem um crime, o que para a sua estabilidade psicológica é muito importante. As informações científicas falsas só aumentam o medo, a ignorância e estimulam o recurso ao aborto clandestino.

Qualquer profissional de saúde que tenha visto uma mulher vítima de um aborto clandestino incompleto com sequelas graves sabe que esta é uma situação humilhante, ignóbil e que nenhuma mulher deveria vivenciar. O aborto clandestino ainda existe. Esta luta ainda não está terminada. Mas, um ano depois, não podemos deixar de nos congratular por as mulheres portuguesas estarem mais próximas dos cuidados de saúde. De Norte a Sul do país, passando pelas ilhas, os profissionais de saúde – médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, auxiliares – mobilizaram-se para permitir que esta nova lei fosse posta em prática, convictos de que este é um direito ganho pelas mulheres. É de louvar o rápido esforço de reorganização que foi feito pelos serviços de saúde e, principalmente, a extraordinária motivação dos profissionais de saúde (que muitas vezes tiveram de ultrapassar preconceitos no seu local de trabalho) disponibilizando-se, sem ganhar nada em troca, de modo a assimilar esta nova realidade.

Hoje, na minha prática clínica, quando encontro uma mulher que manifesta o desejo de interromper uma gravidez dentro do prazo legal, tenho o dever de a informar de todas as opções que possui, que independentemente da sua decisão será acompanhada por profissionais e que nenhum profissional de saúde as pode julgar.

É imprescindível que todas as mulheres portuguesas compreendam que conquistaram um direito. Ao dizer isto, não faço a apologia do aborto. Faço sim a apologia da escolha, de uma escolha informada e consciente.

No dia 12 de Fevereiro de 2007 e, agora um ano depois, acordámos todos – profissionais de saúde e utentes – com a certeza que o nosso país é mais humano e, acima de tudo, mais livre.

Vasco Freire, Médico

 

Presidente da Associação Médicos Pela Escolha